segunda-feira, 16 de setembro de 2013

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Incendiando a memória da MPB

Historiador mostra como o cantor Wilson Simonal foi esquecido em nome de uma memória de resistência à ditadura militar
Publicado em 06/12/2011 | RAFAEL COSTA
Uma pérola da MPB, que ficou esquecida por décadas, começou a ser redescoberta, sobretudo nos anos 2000. O nome Wilson Simonal, que não tinha mais que algumas notas de rodapé e pequenas citações na imprensa desde o início dos anos 1970, passou a circular em listas como “50 Imortais da Música Brasileira” ou “Cem Maiores Músicos do Brasil”. Uma de suas músicas, “Não Vem Que Não Tem”, voltou a ser hit nacional quando entrou para a trilha sonora do filme Cidade de Deus e de um anúncio de multinacional. Outra, “Sá Marina”, foi resgatada por Ivete Sangalo.
O processo foi visto de perto pelo historiador Gustavo Alonso, que enxergou um pouco dos dois cenários para Simonal – um dos cantores brasileiros de maior sucesso na segunda metade da década de 1960, mas que caiu no ostracismo e carregou a fama de dedo-duro da ditadura nos anos seguintes. A escolha pelo caso do músico carioca como tema para a sua tese de mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense surgiu justamente da ausência de referências a Simonal na bibliografia.
Opinião
Com a mão no vespeiro
Para quem aprendeu a ver, desde os primeiros passos da formação, a MPB como um dos principais instrumentos de resistência de toda a sociedade contra a ditadura militar, o livro de Alonso impressiona pela coragem. É como mexer em um vespeiro, e não é difícil imaginar a reação, por exemplo, de fãs incondicionais de Chico Buarque diante da desconstrução que o historiador faz da formação de sua imagem de “resistente ideal”. Pois Chico também foi associado à alienação e teve a sua “Carolina” entre as preferidas do presidente Costa e Silva. Este, aliás, é um dos métodos de Alonso no livro: comparar “erros” semelhantes aos de Simonal cometidos por outros artistas que, no entanto, não ficaram estigmatizados. Mas isso tudo foi “esquecido”, assim como assombrosos episódios em que Alonso apresenta os sinais de que a sociedade apoiava ao regime. Trata-se de um trabalho urgente, que merece ser lido em larga escala – até pela simplicidade com que Alonso desenvolve a sua tese, tornando-a acessível para não historiadores. Urgente, com certeza, e dolorosa para muitos. GGGG
Serviço:
Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, de Gustavo Alonso. Record, 471págs. R$ 49,90. Biografia.
Rafael Costa, repórter
“Eu perguntava sobre Simonal, e as pessoas não respondiam”, disse Alonso, em entrevista por telefone à Gazeta do Povo. “Nos livros que lia, as referências eram sempre muito pontuais. O fato de ele ter sido expulso do panteão da MPB me atraiu. Não conhecia a obra dele, mas me deparei com aquilo e vi que tinha algo ali”, explica Alonso, que se lançou em uma pesquisa de seis anos que culminou em sua tese e no livro Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga: Wilson Simonal e os Limites de Uma Memória Tropical, publicado pela editora Record.
Mas o ostracismo de Simonal, durante o período em que Alonso fez a pesquisa, foi mudando rapidamente. O próprio autor se deparou com uma postura diferente das pessoas quando passou a tratar do cantor, por exemplo, após o lançamento do filme Simonal – Ninguém Sabe o Duro Que Dei (2009).
“Antes, eu ia falar do Simonal e citava Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso. E acontecia algo que me incomodava: ninguém conseguia debater Simonal”, diz Alonso. “Depois, acontecia o oposto. Eu ia falar do Simonal e as pessoas não queriam sair do assunto”, diz.
Algoz e vítima
Ao contrário da simplicidade da reabilitação, é justamente a visão crítica da institucionalização da MPB e da construção da memória da sociedade que norteiam o olhar de Alonso sobre o caso Simonal. “A reabilitação dele foi de diabo a santo muito rapidamente, sem se compreender os meandros, as ambiguidades, ignorando os outros casos. Se colocarmos o Simonal no papel de ‘não fez nada’, continuamos sem problematizar a MPB”, diz Alonso.
No livro, o historiador faz uma instigante análise social em que os músicos são os principais protagonistas de uma confusa dicotomia entre as posturas de protesto e adesão à ditadura nos anos 1960 e 1970. E traz polêmicas: vários artistas flertaram com a ditadura. Simonal foi um bode expiatório, e ajudou a MPB e a sociedade a “purgar” e a se eximir de suas relações com o governo militar.
Para Alonso, o episódio que passou a associar o cantor com a ditadura não foi a causa central do “exílio” que ele viveu dentro do país.
Simonal foi condenado pelo envolvimento na tortura de um ex-contador, feita por policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em 1971, e se defendeu como um colaborador do regime. Acabou sendo considerado, mais que um adesista, traidor. O caso também inclui racismo, como se costuma reconhecer. Mas, de acordo com Alonso, foi sobretudo uma questão de estética e política.
MPB
“É uma tragédia em vários sentidos. Mas costumo enfatizar que, muito mais que racismo ou o caso do contador, parece que o fundamental para o ostracismo do Simonal foi a concorrência com o tropicalismo e a tentativa de diálogo com o país massivo – que estava na base da ditadura”, diz Alonso.
O cantor representava bem a sociedade em sua relação com a ditadura. Havia nuances e contradições que colocavam os brasileiros em uma “zona cinzenta” entre a resistência e a colaboração. “Para mim é incômodo também, porque estou dizendo, entre outras coisas, que familiares meus apoiaram”, diz o historiador. “Mas não se trata de punir fulano ou cicrano, e sim de entender o que aconteceu, e por que se esqueceram disso.”
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“A história da MPB sempre foi privilegiada por pesquisadores, escritores, acadêmicos e jornalistas [...]. É comum que artistas não identificados a este gênero estético-político sejam associados a baixa qualidade estética e a alienação política. [...] Constrói-se, assim, uma história musical dicotômica, simplista, que enxerga resistentes e alienados. [...] Enfim, certos artistas são silenciados pela memória hegemônica em nome de um conceito estético e político, apagando-se a vivência afetiva de milhões de brasileiros.”
Trecho de livro Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, de Gustavo Alonso.
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Texto originalmente postado no Jornal Gazeta do Povo, de Londrina: http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1199698&tit=Incendiando-a-memoria-da-MPB