segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Caetano cita o livro "Simonal: quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga"

Despois de fazer uma segunda entrevista com o Caetano Veloso acerca de meu futuro livro sobre música sertaneja (Cowboys do Asfalto: música sertaneja e modernização brasileira - no prelo), o gênio da raça comentou a entrevista em sua coluna semanal de O GLOBO.  E parece querer dizer algo sobre a recente produção bibliografica musical brasileira...  Elogiou a obra e pontuou o que acha importante.  No plano geral, confundiu a entrevista sobre um determinado aspecto do futuro livro com a crítica a minha obra sobre Simonal e a de Paulo César de Araújo sobre a música brega... Mas já é uma honra ser citado pelo grande Caê, e não poderia ser diferente!


Caetano Veloso

Moral da história

26/08/2012

‘Somos sempre relembrados de que nossas alegrias são suspeitas, nossa possível felicidade, criminosa’

Possivelmente por causa de Adorno, somos sempre relembrados de que nossas alegrias são suspeitas, nossa possível felicidade, criminosa. Grande parte das excitações tropicalistas tem origem no movimento íntimo para confrontar esse mandato. Me lembro de chegar a amar um anúncio de açúcar que ocupava enorme espaço na parede em frente ao apartamento em que morei em São Paulo em 1967-1968. Dizia simplesmente “Açúcar sacode” e tinha a imagem de uma moça saudável e sorridente. Não foi outra a razão principal para a utilização do bordão de Simonal e Chacrinha, “Alegria, alegria!” para título da canção que caracterizou o movimento. A aproximação com o rock veio por caminho análogo: Roberto Carlos cantando “Quero que vá tudo pro inferno” foi a ponte para a recepção dos Beatles e a aceitação das manifestações da cultura de massas.
O modelo godardiano sugeria que o amor pelo cinema não podia ignorar Hollywood, ao contrário. A consciência das dimensões trágicas da vida não impedia que, em seus filmes, a reverência pelo contentamento selvagem de personagens inconscientes das questões sociais ou morais explodisse em imagens de grande poder físico. Liberdade que, por sua vez, não impediu o diretor de passar a tomar os temas políticos e filosóficos que o interessavam como matéria da vida consciente dos personagens de seus filmes posteriores. O caso desse cineasta francês é paradigmático das oscilações entre cantar a dor e a delícia da existência e aderir ao ideário crítico do marxismo ocidental. Veja “Pierrot le fou” e, depois, “A chinesa”. Pense no Godard amante de “Um pijama para dois” e em suas entrevistas dos anos 1980, onde ele desanca Spielberg. Ou veja o filme (de transição) sobre os Rolling Stones e leia o que, pouco depois, ele passou a dizer sobre a indústria cultural.
Um rapaz chamado Gustavo Alonso, que escreveu “Simonal: quem não tem suingue morre com a boca cheia de formiga”, livro sempre interessante (a escolha da frase violenta para o título dá uma mostra da combatividade do autor), estranha uma possível incoerência entre a atitude simpática de tropicalistas (e roqueiros oitentistas) em relação a formas de expressão estigmatizadas em sua época e a resistência a aceitar a música sertaneja repaginada, nascida com Chitão e Xororó e hoje nas mãos dos “universitários”. Eu próprio compartilho com Gustavo algo desse estranhamento. Mas precisei dizer a ele que as coisas não são tão simples e lógicas como ele pretende. Feliz e infelizmente. Alonso segue de perto os argumentos de Paulo Cesar de Araújo, autor de “Eu não sou cachorro, não”, livro instigante e cheio de revelações. Parece-me que ambos tendem a, por um lado, simplificar uma questão complexa, e, por outro, a apontar para uma ausência total de discriminação da produção artística. Eu disse a Alonso que as exigências estéticas de quem produz responsavelmente são fortes. A discriminação é condição da criação. Amo Dori Caymmi inclusive porque ele nunca arredou pé de sua intransigência contra os tropicalistas. Do meu ponto de vista, nós tínhamos razão, mas Dori precisava não ver essa razão para atender às demandas da formação de seu estilo — e ninguém toca violão como ele, ninguém escreve arranjos como ele. Um atitude acrítica, de vale tudo, a institucionalização da “geleia geral” de que falou Pignatari, seria a morte.
As aberturas para formas não canônicas são, muitas vezes, mais fechadas do que o cânone. E a seleção do que reavaliar (ou reavalizar) tem de nascer de funda intuição estratégica. É um pouco como a receptividade de linguistas para formas desprezadas. Há a sabedoria das apostas e há o crivo da eficácia das políticas sugeridas. Vale-tudo e partidarismo são nocivos.
Há uma canção que me assombra. É “Vivo en un pais libre”, de Silvio Rodriguez. Ela fala de um momento de reconhecimento da grande felicidade do cantor. Como é cubano, esse canto de afirmação da vida está isento da censura dos adornianos. Na tradição chorona da canção latino-americana, canções de alegria foram vistas como novidade quando começaram a aparecer (ao menos no Brasil) no nascimento da bossa nova e, mais fortemente, no pós-tropicalismo setentista. As patrulhas ideológicas, flagradas por Cacá Diegues, logo disseram que éramos a “patrulha odara”. Mas o cubano tem direitos especiais. De fato, estar até hoje sob o embargo americano é sinal de que ousadia histórica houve. No entanto, as palavras finais da canção, de pedido de perdão aos “mortos da minha felicidade” (que Antonio Cicero me disse achar belo e parecido com o que Brecht diz às gerações futuras), fazem pensar nos paredões e na complexa moral da história.


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