segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009


Parte do Capitulo 4: Cabo Simonal

Uma multidão invadiu o campo do Maracanã para abraçar o herói vestido de branco, que pegava a bola no fundo das redes, no lado direito. Fora o jogo de um time só, e todos os olhos estiveram sobre o camisa 10. O goleiro Andrada socava o chão com raiva, mas afinal fora melhor assim: provavelmente ele não sairia vivo de campo se conseguisse empurrá-la para fora. Foi xingado pela torcida do camisa 10 quando, ainda no primeiro tempo, espalmou uma bola que ele chutara, de três dedos, da quina da grande área para o ângulo oposto, lá bem pertinho de onde a coruja dorme. Quando perdeu esta ótima oportunidade, os jogadores da defesa vascaína se abraçaram e ironizaram o artilheiro: “ô crioulo, aqui não vai fazer não!”.


No segundo tempo, o “crioulo” avançava pelo meio da área quando trombou com o zagueiro, e caiu meio que de maduro. O juiz apontou a marca do pênalti, apesar da revolta dos vascaínos. Raivoso, um deles começou a fazer um buraco na marca do tiro livre sem o juiz perceber, de forma a prejudicar a sorte do herói. Mas aquele não era um artilheiro comum. Mesmo nervoso e com as pernas bambas, ele bateu bem, no cantinho direito, à meia altura, para dificultar a vida do adversário. Apesar da plástica ponte para a esquerda, dessa vez Andrada não teve chance. Mais uma vez cumpria-se o ditado de que as pessoas só notam o goleiro quando este falha. Mas há males que vem para o bem, e Andrada com certeza será mais lembrado por esse gol sofrido do que por qualquer outra de suas boas defesas. Ela dormia agora na haste que segura o barbante, bem no cantinho.


Repórteres se estapeavam para colocar os microfones o mais próximo possível, em busca de declarações históricas. As grandes antenas dos transmissores invasores e os fios dos microfones davam a impressão de que o herói iria desaparecer em meio a tanta parafernália tecnológica. Com os braços levantados segurando a bola, era carregado por torcedores eufóricos. Em êxtase, não conseguia dizer nada.[1]


Era 19 de novembro de 1969, dia da Bandeira. Aquele não fora um pênalti qualquer. Jornalistas do mundo inteiro estavam presentes no gramado esperando pela consagração do maior jogador de todos os tempos. Quando a situação se acalmou um pouco, o camisa 10 do Santos conseguiu, aos prantos, dizer alguma coisa aos repórteres: “Vamos ajudar os pobres. Vamos ajudar as crianças. O povo brasileiro não pode esquecer as crianças.”[2]


Em janeiro do ano seguinte ele resolveu dedicar mais do que um gol às “crianças do Brasil”. Pelé resolveu arrecadar fundos para as crianças pobres e para isso chamou aquele que era o “crioulo” mais famoso do Brasil, depois dele próprio, é claro: “ – Pelé, nessa trincheira que você abriu pela criança pobre, pode contar com o velho cabo Simonal. Estou nessa milícia. Conte comigo. Se o negócio é criança, estou nessa.”[3]


Shows beneficentes foram então organizados, um cantava e outro fazia exibições futebolísticas. De brincadeira, os dois reis, o da música e o do futebol, também invertiam seus papéis. Pelé cantava músicas de sua autoria, e Simonal batia uma bolinha e mostrava que era muito melhor cantor do que jogador. Os jornais não perderam a chance de noticiar o encontro dos heróis:
“Quando dois reis se encontram - A dupla real agora está unida por uma causa nobre: criar a fundação Pelé em benefício das crianças pobres do Brasil. Juntos eles bolaram a festa dos 1000 gols no Maracanãzinho – promovida pela Shell e pela TV Globo e cuja renda se destina a organizações de caridade comandadas pela LBA. Um jogará e outro fará shows beneficentes.”[4]


[1] DVD Pelé Eterno, Universal, 2004.
[2] Vídeo da comemoração do milésimo gol de Pelé foi exibido no programa Esporte Espetacular da Rede Globo, em 25/3/2007.
[3] Fatos e Fotos (1/1/1970), ano IX, nº 465.
[4] Idem; Fatos e Fotos (8/1/1970), ano IX, nº 466.

Simonal, Pelé e o racismo



Simonal não se via como descendente dos negros da África e, por isso, não se vestia como “índio africano”, como dizia. Sua matriz era outra, era americana. Aliás, tanto Simonal como Toni Tornado e Erlon Chaves se comportavam como negros norte-americanos.[1] Mas essa postura de negros norte-americanos se distanciava da identidade negra hegemônica no Brasil. E Simonal, paradoxalmente, incorporava as duas práticas, tanto a conduta negra americana de se portar (ao ser um negro “exibido”, confiante, que se impõe) e a brasileira (negando o “ancestral”). Assim, é compreensível que Simonal se visse influenciado pelos negros norte-americanos sem adotar a perspectiva racial americana, ou seja, negando a importância do “ancestral africano”. E, assim, no Brasil, o discurso racial (e do racismo) compete em igual peso com outras questões, especialmente a questão econômico-social. Pelé deixou claro este ponto de vista em 1979: “aqui no Brasil o problema do racismo é mais social”.[2] A opinião de Pelé não é um julgamento isolado, ela encontra forte eco social, e não só de brancos. O discurso do racismo quase nunca é a única explicação para os problemas sociais segundo grande parte dos próprios negros brasileiros. No auge do sucesso Simonal tinha o mesmo discurso de Pelé. No ostracismo o discurso racial ganha mais força na sua boca.


Mesmo querendo apontar a importância do racismo para seu ocaso, Simonal continuava a reproduzir o estilo “brasileiro” de ver as “raças”, ou seja, valorizando mais as influências do que as ascendências, mais as conexões sociais do que o “genótipo”, mais as diversas matrizes que “o ancestral”. Críticos poderão dizer que essa relativização do racismo é fruto da ideologia da “democracia racial”, que esconde preconceitos e dominação. Para estes, a “realidade” brasileira está, na verdade, muito próxima da “realidade” do Estados Unidos e o racismo brasileiro é “até pior” do que o americano, pois “não acontece às claras”. Todos seriamos hipócritas ao “fingir” que ele não existe.


Assim, a adoção da perspectiva racial bipolar serviria para resolver as desigualdades raciais por meio do conflito. Essa é uma das razões pela qual alguns críticos sociais preferem o modelo racial americano. O jornalista d’O Pasquim Tarso de Castro deixou evidente esta posição quando comparou os esportistas Pelé e Cassius Clay, em 1970. O boxeador americano, também conhecido pelo nome muçulmano, Mohammed Ali, foi valorizado frente ao “imobilismo do rei”. Na década de 1960, Clay engajou-se na luta dos negros americanos e se negou a lutar no Vietnã, razão pela qual foi suspenso do boxe: “Nada poderia me dar mais alegria do que a volta de Cassius Clay, na semana passada, com a garra de um campeão que ele sempre será. Trata-se de um campeão, dentro e fora do ringue, um homem de sua gente, um lutador, um homem que representa a grandiosidade da raça negra. E nada me entristece tanto quanto ver que nós, tendo um magnífico Pelé, temos um péssimo Édson Arantes do Nascimento”[3] (grifos meus).

Críticos como Tarso de Castro cobravam de Pelé uma postura mais “combativa”, que fugisse da imagem de “bom-moço” tão elaborada pelo próprio. No entanto, a idéia de que o jogador sempre foi um “negro bem-comportado” parte do princípio de que ele teria que adotar o discurso bipolar americano e se tornar um “lutador”, “um homem que represente a grandiosidade da raça negra”. Mas, assim como Simonal e Fio, Pelé não adotou o discurso d’o ancestral africano. E, mesmo assim, no Brasil, ele é visto como “um homem da sua gente”. A opinião do jogador transparece o mito da democracia racial e, mais importante do que isso, transparece também os arranjos culturais e sociais brasileiros que negam o particularismo racial em nome de valores universais.[4]


Longe de representar uma exceção, o comportamento de Pelé parece ser respaldado socialmente, por mais que os resistentes prefiram o boxeador. Para além do poder da mídia na divulgação de seu mito, a conduta de Pelé quanto ao tema racismo representa a forma como muitos brasileiros vêem a questão racial. A “raça” não é índice explicativo holístico, mas um dado relacional, que se constrói na vivência.


Um dos poucos a defender Pelé naquela época foi, corajosamente, Caetano Veloso. Em meio a um debate em que estavam Chico Buarque, Aldir Blanc, Sergio Cabral e Edu Lobo em meados dos anos 1970 Caetano fez o que poucas pessoas públicas fizeram. Sua precisão vale a reprodução na integra de sua fala:


Repórter: Chico falou da necessidade de se alcançar uma certa situação de poder para ter condições de influir. Muita gente critica Pelé, por exemplo, porque ele ao invés de falar dos problemas de sua raça dedica o seu milésimo gol às criancinhas do Brasil. Com o prestígio e o poder que ele tem, poderia contribuir para combater a discriminação racial.
Caetano: O que se falou sobre Pelé é revelador. Quando você cobra de Pelé uma atitude em relação a problemas sobre os quais você pensa de uma determinada maneira, você está se esquecendo de que Pelé é uma pessoa que já fez muito. É dificil uma pessoa conseguir o que Pelé conseguiu. Você está projetando em Pelé os valores utópicos que você tem, sem analisar os fatores que levam um indivíduo a se tornar um Muhammad Ali ou um Mao Tse-Tung. Como é que Pelé, jogando o futebol que joga, poderia ter uma consciência politica? Não quero dizer com isso que não se deva pedir mais. Porém temos de ver como Pelé chegou a esse nível de realização dentro desta sociedade. Temos de ver o lugar onde nasceu, as condições de onde veio, como as coisas se processaram. Não conheço nenhuma declaração importante de Pelé sobre a situação do negro no Brasil e no mundo, sobre a situação do homem pobre, sobre a situação do Brasil diante dos outros países, ou mesmo sobre a situação jurídica dos jogadores de futebol. No entanto, todos esses assuntos foram afetados por ele, Pelé, pelo simples fato de jogar o grande futebol que joga e de ter chegado ao ponto em que chegou, abrindo uma imensa gama de possibilidades. Pedir a ele mais que isso seria pedir energia demais a quem já dá energia em demasia. Sem que Pelé dissesse uma só palavra, o jogador de futebol no Brasil ganhou a possibilidade de dizer suas próprias palavras. Os nossos jogadores eram escravos... é proibido vender gente no Brasil, mas os jogadores de futebol eram vendidos e comprados e ninguém contestava isso. Eles não tinham nenhuma respeitabilidade. Pelé conseguiu mudar coisas imensas pelo simples fato de jogar no Brasil. A gente tem de parar e ver a carga de informação cultural e a energia de liberdade e de verdade que emanam de Pelé, ao invés de desrespeitá-lo. É uma humildade que temos de ter. Alguns jogadores de futebol tentaram discutir politicamente a sua profissão e suas carreiras pouco duraram, não só por causa da reação contra a sua tentativa de serem conscientes, mas também por causa de sua própria formação psicológica. Penso em Afonsinho e em Nei Conceição. Acho, por isso, que a armadura de Pelé é útil e necessária. Ele é um homem que diz: "Eu não falo ! Não quero falar ! Não posso! Não tenho nada a ver com isso! Quero ser uma pessoa grande!" Esse é Pelé, um rei dentro de uma pessoa. Não me consta que João Gilberto tenha se preocupado com direitos autorais, com relação dc produção nem com a estrutura do poder. Nunca se ouviu ele dizer que a injustiça social está errada. No entanto, estamos todos aqui por causa dele, porque cantou e tocou daquele jeito, porque a energia de rei dentro daquele homem funcionou iluminando uma porrada de coisas.”[5]


Fazendo as devidas críticas ao conceito de Gilberto Freyre, e sem ignorar a existência do racismo no país, cabe repetir a pergunta de Peter Fry: “será que a idéia da semelhança de todos é tão nociva assim?”.[6]


[1] Agradeço ao professor Daniel Aarão por chamar atenção para tal postura “americanizada” desses artistas durante a qualificação, em agosto de 2006.[2] Isto É (14/3/1979) apud Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Pereira, op. cit., 1980, p. 128.[3] “Um campeão”, O Pasquim (4/11/1970), nº 72, p. 31.[4] Segundo Fry: “O ‘fracasso’ do Movimento Negro na conquista de corações e mentes dos brasileiros decorre do conflito entre os princípios segregacionistas que estão no cerne da ideologia do Movimento e os anseios assimilacionistas que continuam fortes no senso comum brasileiro”. Peter Fry, op. cit., p. 178.[5] Esta entrevista foi obtida no site do compositor. Trata-se de um especial da revista Homem, sem data. Sabe-se que Homem é o nome da revista Playboy entre 1975 e 1978, antes de poder assumir o nome internacional por causa da censura. Presumo que a entrevista seja de 1976. Ela pode ser obtida através do link: www.chicobuarque.com.br/texto/mestre.asp?página=entrevistas/homem.htm[6] Peter Fry, op. cit., p. 186.